martes, 2 de febrero de 2010

O IV Congresso Ibérico de Didáctica da Geografia (Lisboa, 2009)

O IV Congresso Ibérico de Didáctica da Geografia (Lisboa, 2009)

Sérgio Claudino
Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa

A proximidade geográfica e cultural de Portugal e Espanha poderá sugerir assinaláveis semelhanças no ensino de Geografia. Contudo, a tradição curricular é diferente: em Espanha, uma disciplina de Ciências Sociais, Geografia e História agrega estes saberes disciplinares, enquanto em Portugal, desde o final do século XIX, a Geografia tem sido autónoma na maioria dos níveis escolares. Os dois países coincidem na caracterização física da Península, mas desvalorizam-se reciprocamente, na herança de velhos nacionalismos. O principal traço comum residirá na forte influência da escola regional francesa, na adesão ao projecto europeu (mais acentuado em Portugal) e nos problemas de afirmação escolar de uma disciplina que luta quase em permanência pela sua presença no currículo.
Nos regimes democráticos desenvolvidos em ambos os países a partir do final do século XX, afirmam-se as associações profissionais de docentes, designadamente a Associação de Professores de Geografia/APG, de Portugal, e a Associação de Geógrafos Espanhóis, com o seu Grupo de Didáctica da Geografia. Do desenvolvimento dos contactos institucionais entre ambas as associações, nasce o projecto de realizar os Congressos Ibéricos de Didáctica da Geografia, alternadamente em cada um dos países, em colaboração com universidades.
O primeiro Congresso Ibérico de Didáctica da Geografia decorreu em 2001, em Madrid, em colaboração com a Universidad Complutense de Madrid (Departamento de Didáctica das Ciências Sociais) e teve por tema “La Formación Geográfica de los Ciudadanos en el Cambio de Milenio”. O segundo realizou-se em Lisboa, em 2005, com a colaboração da Universidade Nova (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas) e teve por tema “Ensinar Geografia na Sociedade do Conhecimento”. O congresso seguinte realizou-se em 2006, em Almagro, com o patrocínio da Universidad de Castilla-La Mancha, sobre “Cultura Geográfica y Educación Ciudadana”.
O IV Congresso Ibérico decorreu em Lisboa, nos dias 6 e 7 de Novembro, contou com a colaboração da Universidade de Lisboa (Instituto de Geografia e Ordenamento do Território) e debruçou-se sobre “A Inteligência Geográfica na Educação do Século XXI”. Dos quatro temas dos congressos sobressai a preocupação em que a educação geográfica saiba responder aos desafios deste começo de século e milénio, emergindo como prioritária a questão da cidadania, evocada nos primeiro e terceiro congressos.
Ao contrário do que sucedeu em Lisboa, em 2005, o Congresso Ibérico de 2009 não coincidiu com o Encontro Anual de Professores de Geografia, que se realizou durante as férias da Páscoa (Abril), a fim de facilitar a participação dos professores portugueses. A menor consequência desta separação consiste num número inferior de participantes; a mais importante, residirá num claro “separar de águas”: os congressos ibéricos são reuniões de carácter mais teórico, que mobilizam, sobretudo, académicos e que possuem pouco interesse para os professores que estão todos os dias nas escolas. Dos últimos Encontros Nacionais, como se pode concluir pelos programas, está praticamente afastado o debate didáctico, em favor da abordagem, por especialistas, de temáticas de interesse geográfico, igualmente de âmbito local, na lógica de que aos professores de Geografia é sobretudo útil a actualização científica de matriz disciplinar. Não vale a pena procurar culpados deste aparente divórcio entre a discussão sobre a didáctica da Geografia e os interesses dos docentes dos ensinos básico e secundário, corporizados pela respectiva Associação. Todos teremos culpa e todos encontraremos boas justificações. Mas convenhamos que esta não é uma situação normal e positiva.

O IV Congresso Ibérico contou com perto de 120 participantes. Este número que não é, em si mesmo, inferior ao de congressos anteriores, mas é diminuto se nos lembrarmos que o ensino da Geografia mobiliza milhares de profissionais em ambos os países. De Espanha, vieram cerca de 30 participantes. A grande novidade do Congresso residiu na participação de colegas ibero-americanos, 5 brasileiros e 1 argentino. A organização do Congresso já instituíra como eixo temático o ensino da Geografia no espaço ibero-americano. Com conhecimento de causa, podemos afirmar que o Geoforo Iberoamericano sobre Educación, Geografia y Sociedad vai contribuindo para a construção deste espaço de debate. A presença sul-americana, especialmente do Brasil, reflecte o crescente esforço de contacto dos colegas deste país com a Didáctica da Geografia ibérica. Procuram novas pistas trilhadas pelos colegas portugueses e espanhóis – o que nem sempre encontrarão.
O Congresso Ibérico durou dois dias, sendo a última tarde de visita pedonal a Lisboa, onde se lançou “Um olhar sobre as colinas de Lisboa”, após o que decorreu o tradicional jantar do evento. O Congresso repartiu-se entre o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, no primeiro dia, e o edifício da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde funciona o IGOT, na manhã do segundo dia. A mudança de instalações obrigou a um esforço acrescido por parte dos organizadores, que tiveram de deslocar bancas e equipamentos, para além dos custos que representou o aluguer do Arquivo Nacional para a organização do Congresso. A visita a pé a Lisboa foi muito interessante, também pela identificação de tendências recentes de ocupação do território ribeirinho da capital. A sua finalização na Sociedade de Geografia de Lisboa, onde se realizou o jantar, também representa a crescente aproximação dos geógrafos a esta instituição que lhes é tão próxima.
A cada participante foi entregue, entre outra documentação, um pertinente caderno com o programa, resumos das comunicações e um cdrom com o texto das mesmas, cuja informação aqui mobilizamos. Por muito antipático que seja aos comunicantes, é útil que todos os participantes tenham acesso aos textos integrais das intervenções durante a própria reunião. Devido a problemas de impressão, o livro de actas foi entregue posteriormente aos participantes. Colegas da Universidade de Castilla-La Mancha organizaram uma pequena exposição de homenagem ao Professor Lorenzo Sanchez (a que nos referiremos adiante) e realizou-se, ainda, uma pequena exposição sobre Espanha nos manuais escolares de Geografia portugueses. De uma forma mais geral, a Associação de Professores de Geografia continua a revelar a sua eficiência (e treino) na promoção deste tipo de eventos.
Após a sessão de abertura, com a participação dos responsáveis das entidades promotoras do Congresso, seguiu-se uma emocionada homenagem ao Lorenzo Sanchez, principal responsável pela organização do anterior Congresso Ibérico e entretanto desaparecido. Nesta, foi recordado o seu profundo empenho em que colegas espanhóis e portugueses estreitassem as suas relações.
Seguiu-se a Conferência de Abertura sobre “A Contribuição da Geografia para a Cidadania” (preocupação assim sempre presente), do Professor João Guerreiro, geógrafo e reitor da Universidade do Algarve. Maria de Jesús Marrón Gaite, durante muitos anos presidente do Grupo de Didáctica da AGE fez, no começo do segundo dia, a segunda conferência, intitulada “Educación geográfica y formación del profesorado. Desafíos y perspectivas en el nuevo espacio europeo de educación superior”, em que deu particular atenção a um “ensino activo”, centrado no protagonismo dos alunos. Manifestou o seu apoio à imposição de um Mestrado de Formação Didáctica a todos aqueles que pretendem ingressar no ensino secundário – recorde-se que, até agora, em Espanha qualquer pessoa podia ingressar como docente do ensino secundário (que se estende dos 12/13 aos 17/18 anos), desde que aprovado nas provas de ingresso, sem necessidade de qualquer formação docente inicial (Tam só uma Certificação dum curso de 150 horas, CAP).
As comunicações organizaram-se por quatro eixos temáticos:
. “Experiências educativas para o desenvolvimento da inteligência geográfica”, 18 comunicações, 24 comunicantes
. “Geografia e Cidadania no Espaço Ibero-Americano”, 2 comunicações, 2 comunicantes
. “Formação de Professores: Desafios e Oportunidades”, 10 comunicações, 11 comunicantes
. “O ensino da Geografia e as TIC, mitos e factos”, 7 comunicações, 9 comunicantes

Há, assim, um claro predomínio de comunicações directamente relacionadas com as práticas escolares, sendo também estas as apresentadas em maior número em parceria. No primeiro eixo, foram abordados assuntos muito diversos: o papel dos mapas conceptuais na planificação didáctica; o ensino de Geografia baseado na aprendizagem pela resolução de problemas; o papel da imagem/representação no ensino da Geografia; os exames do ensino secundário portugueses e espanhóis como obstáculo à inovação didáctica; a elaboração de mapas na formação de professores do ensino infantil e primário e uma experiência bem sucedida de construção de mapas da Andaluzia por alunos; a importância da paisagem no estudo do meio próximo ou a sua interpretação por alunos com deficiências; um estudo comparativo do contacto com a natureza de jovens espanhóis e alemães e o seu reflexo na construção da consciência ambiental; o património natural e cultural no ensino de Geografia; recursos didácticos utilizados na aprendizagem de áreas protegidas espanholas e portuguesas; a importância do meio próximo na formação de professores de infantil e primária (Espanha); um jogo de papéis sobre a desflorestação da Amazónia; diferentes experiências de estudo e reflexão sobre o espaço urbano no Brasil e em Espanha; experiências educativas desenvolvidas nos cursos de educação e formação de adultos/EFA de três escolas secundárias de Lisboa. Observou-se uma diversidade muito grande quer de assuntos quer de discursos, sem que emerja uma preocupação ou temática dominante.
A formação de professores foi o segundo eixo mais valorizado. As comunicações foram efectuadas, em geral, por participantes ligados à formação de professores de Geografia e reflectiam, por norma, sobre a forma como a preparação inicial de docentes é efectuada nas respectivas instituições. Tanto em Portugal como em Espanha (mas também na Argentina) os cursos de mestrado na formação inicial de docente são a novidade e os discursos dos autores das comunicações vão no sentido de justificar, como seria normal, a formação aí desenvolvida. Assim, há comunicações sobre a formação inicial de professores na Universidade do Porto; uma experiência de investigação/acção na formação de professores de Rio Grande do Sul; percursos e áreas prioritárias na formação de professores do IGOT/UL; a formação de professores do 1º ciclo na Escola Superior de Educação de Lisboa e a integração de crianças imigrantes; a Geografia nos cursos de Mestrado em Educação Infantil e de Educação Primária da Universidade de Alicante; o Mestrado em Didácticas Específicas da Universidade Nacional da Patagónia; a articulação da formação e da prática docente, na Universidade Federal de Santa Catarina. Duas comunicações de docentes da Universidade Aberta e da Universidade do Minho incidiram sobre rupturas e continuidades na formação de professores de Geografia portugueses e a interdisciplinaridade na formação de professores de História e Geografia.
As novas tecnologias foram o terceiro eixo mais valorizado nas comunicações, mas foi aquele que despertou maior interesse entre o público assistente. Este eixo iniciou-se por uma comunicação sobre até que ponto as novas tecnologias representam uma inovação efectiva na educação geográfica. O Google Earthe na preparação de professores de educação infantil; as TIC na formação de alunos de um curso profissional de turismo; o blog como ferramenta em Didáctica da Geografia; os Virtual Classroom Tour/VCT e as WebQuest no ensino básico de Geografia; o ensino virtual de cartografia para alunos dez universidades andaluzes e, por último, uma comunicação sobre este Geoforum, intitulado “Podemos construir unha educación xeográfica desde a rede?”, foram os assuntos abordados.
O eixo menos valorizado, de “Geografia e Cidadania no Espaço Ibero-Americano”, não teve qualquer comunicação sobre o conjunto deste espaço: foi apresentado um estudo comparativo sobre as percepções de Portugal e de Espanha e outros territórios por estudantes universitários de ambos os países e abordaram-se problemas ambientais nos manuais escolares de Geografia do ensino secundário obrigatório espanhol.
Os colegas ibero-americanos apresentaram as suas comunicações nos eixos relativos à formação de professores e às experiências educativas. Os seus textos reflectem preocupações teóricas superiores às observadas entre os colegas ibéricos. Vale a pena notar que apenas uma comunicação foi elaborada conjuntamente por dois colegas de países diferentes (Portugal e Espanha), só em três comunicações se fez uma abordagem integrada de aspectos do ensino da Geografia nos dois países ibéricos, numa outra comunicação compara-se a situação em Espanha e na Alemanha e, por último, apenas uma intervenção se debruçou sobre o espaço ibero-americano de ensino de Geografia (a efectuada por Souto González) – ou seja, apenas cinco comunicações ultrapassaram as fronteiras nacionais. Há muito trabalho a fazer na construção de uma Geografia ibero-americana.

No final do primeiro dia, realizou-se um painel sobre “Conhecer o território como vector de desenvolvimento”, com seis participantes, três portugueses e outros tantos espanhóis. Este foi o pior momento do Congresso. Houve intervenções interessantes e pertinentes; mas também se assistiram a outras que fazem parte de uma espécie de fase pré-histórica da Didáctica da Geografia. Foram feitas intervenções sem qualquer relação imediata com o ensino da disciplina, aproveitando trabalhos efectuados com outros objectivos – e não colhe o argumento apressado de que tudo cabe num Congresso de Didáctica da Geografia. No mínimo, é uma falta de respeito para com o ensino da disciplina, que não prestigia quem o faz. Por outro lado, estranhamente, foi anunciado que o conhecimento do território pelos jovens não diminui regularmente segundo as escalas em que se inserem – uma novidade conhecida há algumas dezenas de anos.
A sessão de encerramento decorreu no ambiente simpático de quem partilhou uma jornada de colegas que se sentem mais próximos e cúmplices. Foi lembrado que em Portugal se vivem tempos difíceis, com a perspectiva de uma integração curricular de Geografia e História.
E todos regressaram às suas escolas e aos difíceis desafios do ensino de Geografia.

2 comentarios:

  1. Após a leitura deste texto de Sérgio Claudino, me senti menos descontente com a atual situação da Didática da Geografia e História aqui no Brasil. A importância de iniciativas como esta (Geoforo), é ímpar, na medida em que nos permite trocar experiências, erros e acertos no nosso ofício de professores e pesquisadores.

    O IV Congresso Ibérico de Didática da Geografia é um ótimo exemplo. Refletido pelo autor a partir da própria história do evento, percebemos as principais preocupações dos organizadores, assim como dos participantes (palestrantes ou comunicadores). Nos eventos brasileiros, percebemos em boa parte, aproximações com as discussões do velho continente elencadas por Sérgio.

    Interessante notar que ao invés de uma descrição puramente propagandística, o autor não deixou de lado a criticidade, e apontou algumas insatisfações durante sua apreciação do evento. Em especial, saliento a falta de ligações entre os comentários dos professores com os trabalhos apresentados. E é neste aspecto que julgo ser interessante comentar o texto acima.

    Não parece ser privilégios dos ibéricos tal postura. Mesmo durante a apresentação de excelentes trabalhos nos eventos brasileiros, ainda assistimos discussões pautadas apenas nas experiências dos grandes centros acadêmicos, ou daqueles que se colocam como representantes de grandes linhas de pesquisa. Mesmo que muitos espaços de discussão consigam materializar a intenção de seus criadores, a participação dos pesquisadores/professores também não é de toda positiva, tendo em vista diversidade espacial de nosso país e uma conseqüente pluralidade de perspectivas sobre os temas. Penso que entre Portugal, Espanha e Brasil, temos muito o que caminhar não apenas na elaboração e na reflexão da ciência, mas na forma como observamos a ciência do outro.


    Rafael Cardoso de Mello
    Grupo ELO - USP
    Ribeirão Preto/SP - Brasil

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  2. É no mínimo encorajador, quando temos contato com relatos como este, apresentado pelo professor Claudino e também da manifestação do professor Rafael em relação à Didática da Geografia. Acredito ser de grande importância, a realização de eventos como este que foi descrito. Sou convicto da necessidade de nós professores, estarmos participando de eventos que possam ajudar-nos em nossa lida como educadores, pois o resultado final é bastante compensador. E como posso pensar num resultado após termos um evento em que esteja discutindo sobre a formação de professores e o ensino de Geografia?
    A resposta num primeiro momento me faz lembrar os nossos alunos. Acredito que são eles o motivo de todo o nosso movimento em estarmos empenhados em desenvolver ações e práticas pedagógicas que possam inseri-los num ambiente cada vez mais favorável a discussão do espaço geográfico. Temos que encontrar forças e assim irmos aos nossos alunos com o intuído de melhorar e inovar sempre nossas aulas.
    É através de encontros como este, e tantos outros que acontecem que podemos nos fortalecer, ou seja, debruçarmos em possíveis soluções que possam ajudar nossos alunos na construção do saber e ao mesmo tempo, a troca de idéias sobre nossa postura como professores de Geografia.
    Temos muitos desafios pela frente, e em grande parte, os problemas que se fazem presentes, vão muito além da sala da aula. Contudo, apesar de nossos erros, nós professores, sabemos da importância do nosso papel no contexto educacional. Acredito na superação das diferenças, e se for o caso, vamos chorar ou sorrir juntos, na tentativa de encontramos alternativas, que contemple a melhoria do ensino. Penso que se ficarmos isolados em mundinho, isso sim, pode vir a ser um grande motivo de preocupação para todos nós.

    Marcio Couto
    Professor Geografia
    Membro Grupo ELO - USP - Ribeirão Preto SP/Brasil

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