jueves, 5 de diciembre de 2013

PORTUGAL: RETOMADA A AUTONOMIA DA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES DE GEOGRAFIA E DE HISTÓRIA, NA SEQUÊNCIA DA CONTESTAÇÃO DOS DOCENTES DESTAS DISCIPLINAS


Sérgio Claudino, IGOT-UL, sergio@campus.ul.pt

No final de novembro de 2013, o governo português divulgou uma nova proposta de regime jurídico da formação inicial de professores que termina com a unificação da formação de professores de Geografia e de História, imposta em 2007. Retomam-se, assim, os cursos de formação de professores de Geografia, por um lado, e de História, por outro. Reconquistar a autonomia da formação inicial dos professores das duas disciplinas (e, por esta foram, o respeito por ambas as disciplinas) constituiu uma longa e difícil batalha, com destaque para a Petição Pública Nacional “Por uma formação autónoma dos professores de Geografia e História. Por uma formação inicial de qualidade”, que decorreu em 2011. Foi, pois, com júbilo e sabor a vitória que esta notícia foi recebida.
Em Portugal, a autonomia da disciplina de Geografia em relação à de História remonta, pela primeira vez, a 1888 e prendeu-se diretamente com a divulgação do império colonial. Esta separação Geografia/História ia ao arrepio do que se passava tanto em França, cujo sistema educativo nos influencia directamente, como na vizinha Espanha. Como se sabe, em ambos os países as duas disciplinas estão unidas do ponto de vista disciplinar.
No final de 2006 e no âmbito da adaptação da formação de professores ao Processo de Bolonha, o Ministério da Educação propôs um novo regime jurídico de formação de professores, que surpreendeu por unificar a formação de professores tanto de História como de Geografia no Mestrado em Ensino de História e Geografia. Esta unificação foi vivamente contestada tanto em História como em Geografia. Em Geografia, surge um documento único: as duas associações socioprofissionais de Geografia de âmbito nacional (Associação Portuguesa de Geógrafos e Associação de Professores de Geografia) e todos os departamentos universitários com cursos de Geografia assinaram uma carta, dirigida à então Ministra da Educação, protestando contra esta unificação. De nada valeu, o regime jurídico foi aprovado no começo de 2007 e as universidades obrigadas a cumpri-lo.
No âmbito do Mestrado, os futuros professores passaram a repartir-se pela formação nas duas disciplinas, diminuindo, assim, a anterior preparação numa delas. Pior ainda, era a situação em que se ingressava no Mestrado: um diplomado em qualquer área, desde que tivesse 120 créditos no conjunto das disciplinas (dois anos de formação) e pelo menos 50 créditos numa delas (menos de um ano), poderia ingressar no Mestrado em Ensino e tornar-se professor tanto de História como de Geografia, para alunos dos 12 aos 17/18 anos; no mestrado, frequentava uma ou duas cadeiras específicas destas áreas. Assim, um licenciado em Turismo, por exemplo, com cerca de um ano de formação (ou menos) em História e em Geografia, era considerado apto para ensinar a disciplina ao longo de cinco diferentes graus. Pode-se ser bom professor de uma disciplina de que se possui uma escassa formação científica específica? Não.
As autoridades nunca o admitiram publicamente, mas esta desvalorização da formação inicial representava uma secundarização das Ciências Sociais e apontava para a futura integração numa única disciplina de História e Geografia, estando os futuros professores aptos para leccionarem ambos os conteúdos. Num inequívoco registo neoliberal, a formação do cidadão é menos importante que a sua preparação em Matemática ou Ciências Naturais, mais úteis para o mercado de trabalho.
Este modelo de formação começou a ser implementado em 2007/08, sendo claras as dificuldades de professores de História em dominarem os conteúdos de Geografia e vice-versa.
Em 23 de maio de 2011, e tendo entretanto mudado o Governo, professores de Geografia e de História, juntamente com as associações socio-profissionais de ambas as disciplinas, lançaram a Petição Pública Nacional inicialmente identificada. Note-se que este foi um movimento desencadeado a partir da universidade, onde se formavam os futuros professores. Se a Petição atingisse 4000 assinaturas, seria obrigatoriamente discutida pelo Parlamento português. Tomou-se a difícil decisão de ela só ser subscrita por professores de ambas as disciplinas – que, no conjunto do país, seriam cerca de 9500. Pretendeu-se garantir a autenticidade da subscrição e que ela fosse, em si mesma, um momento de mobilização dos professores de ambas as disciplinas. Também nesta linha, apostou-se na assinatura em papel, em cada escola, e só depois, numa segunda fase, foi aberta a Petição online.
A implementação da Petição não foi fácil. Muitos professores aderiram militantemente, porque se tratava de defender a dignidade da formação inicial da sua disciplina. Contido, sem estar directamente em causa a sua estabilidade laboral, outros docentes encararam com distanciamento a subscrição de uma Petição, sempre um ato de contestação ao poder político, em que os cidadãos se identificam e responsabilizam individualmente. Em muitas escolas, faltou o professor que organizasse a recolha de assinaturas. Vários professores de Historia e de Geografia, disciplinas que se reclamam habitualmente da formação cidadã, revelaram um reduzido espírito de responsabilização cívica. Em setembro, como previsto inicialmente, abre-se a Petição à subscrição online e muitos professores, nas suas casas, não nas suas escolas e perante os seus colegas, subscrevem então a Petição – o que revela um mudança de comportamentos sociais. No começo de outubro, surgem nos jornais notícias de que o Governo pretende reduzir a carga horária tanto de História como de Geografia e, sentindo que as suas disciplinas (e, eventualmente, os postos de trabalho) estavam em perigo, outros docentes subscreveram a Petição. No começo de dezembro de 2011, a Petição Publica Nacional é enviada para a Assembleia da República com 4866 peticionantes (mais de metade subscreveram-na nas suas escolas), o que representa cerca de metade do total dos professores de ambas as disciplinas de todo o país. As assinaturas foram recolhidas em 6 meses, intercalados pelas férias de Verão. Esta foi a maior movimentação dos professores de Geografia e História portugueses, se consideramos tanto individualmente como em conjunto.
Já em 2012, na Assembleia da República, os promotores da Petição foram recebidos pela Comissão Parlamentar de Educação, Ciência e Cultura, que reconheceram a justeza de uma alteração do modelo de formação de professores, com maior exigência de formação prévia para os futuros docentes, acolhendo também a ideia de autonomização da formação inicial nas duas disciplinas. O assunto foi levado depois a debate do Plenário da Assembleia da República, tendo a generalidade dos grupos parlamentares manifestado a sua concordância com esta reivindicação. O próprio Ministério da Educação manifestou a sua concordância com as preocupações manifestadas na Petição quanto à qualidade da formação docente, mas remeteu para uma revisão global do regime jurídico da formação inicial docente a alteração da formação de professores de História e de Geografia. Não se esgotaram aqui as diligências dos promotores da Petição Pública Nacional “Por uma formação autónoma dos professores de Geografia e História. Por uma formação inicial de qualidade”, que foram desenvolvendo uma permanente atividade de lobbing. Ainda em 1 de agosto de 2013, foram recebidos no Ministério da Educação.
Em final de novembro, como já se referiu, o Ministério da Educação, na sua proposta enviada para (apressada) discussão pública, a formação dos professores de Geografia e de História é de novo autonomizada, sendo o único caso de formação bidisciplinar em que tal sucede. A partir de agora, só se pode ser professor de cada uma das disciplinas com, pelo menos, 120 créditos (2 anos) de formação, tanto em História como em Geografia; dada a estrutura dos cursos, na prática vão ser professores de Geografia licenciados em Geografia (3 anos) ou de História, licenciados em História. Estamos longe da exigência de apenas 50 créditos em cada uma. É preciso acrescentar que a orientação geral desta revisão foi no sentido de uma maior exigência nas condições de ingresso nos cursos de formação inicial de professores – no que se enquadrava a nossa própria reivindicação.  
A dignificação da formação docente constitui, em si mesma, um instrumento de dignificação das próprias disciplinas – neste caso, de História e de Geografia. Retomar a autonomia na formação inicial permite reforça, do ponto de vista institucional, as duas disciplinas. A Petição Pública Nacional foi um grande sucesso (pela primeira vez, os professores de Geografia e de História foram individualmente solicitados a tomar uma posição política), ao mobilizar metade dos professores portugueses em torno de uma revindicação que não se prendia com salários ou outros direitos laborais, mas com a dignificação do ensino. Contudo, fica a consciência do desafio de uma ainda maior participação cívica por parte dos docentes de duas disciplinas que se justificam na medida em que contribuem para a formação de cidadãos socialmente intervenientes, seja em torno de uma gestão racional e justa dos territórios, seja na defesa do património identitário.
A conjugação de esforços das várias associações socioprofissionais (para além das mencionadas acima, a Associação de Professores de História e a Associação Insular de Geografia) constitui, em si mesma, uma herança positiva deste processo. De forma inequívoca, valeu a pena lutar – não restam dúvidas que foi a Petição Pública Nacional e a legitimidade que ela conferiu aos seus promotores para continuarem a reivindicar a individualização da formação em Geografia e em História que levou à denúncia de uma junção que muitos, mesmo entre os que constestavam a medida, julgaram irrevogável.

Por último, fica o principal desafio. As disciplinas de Geografia e de História viram, recentemente, aumentada a respectiva carga horária, pelo atual governo de centro direita – no que se reconhece o apego a valores nacionalistas. Por outro lado, retomou-se a formação inicial dos seus docentes. Resta o essencial: o compromisso de ambas as disciplinas com uma formação crítica e cidadã, ou seja, uma formação que ultrapasse os limites dos manuais escolares e da sala de aula e se traduza numa efetiva discussão e participação nos desafios comunitários. 

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