Sérgio Claudino,
IGOT-UL, sergio@campus.ul.pt
No final de novembro de 2013, o governo português divulgou uma nova proposta
de regime jurídico da formação inicial de professores que termina com a
unificação da formação de professores de Geografia e de História, imposta em
2007. Retomam-se, assim, os cursos de formação de professores de Geografia, por
um lado, e de História, por outro. Reconquistar a autonomia da formação inicial
dos professores das duas disciplinas (e, por esta foram, o respeito por ambas
as disciplinas) constituiu uma longa e difícil batalha, com destaque para a
Petição Pública Nacional “Por uma formação autónoma dos professores de
Geografia e História. Por uma formação inicial de qualidade”, que decorreu em
2011. Foi, pois, com júbilo e sabor a vitória que esta notícia foi recebida.
Em Portugal, a autonomia da disciplina de Geografia em relação à de
História remonta, pela primeira vez, a 1888 e prendeu-se diretamente com a divulgação
do império colonial. Esta separação Geografia/História ia ao arrepio do que se
passava tanto em França, cujo sistema educativo nos influencia directamente,
como na vizinha Espanha. Como se sabe, em ambos os países as duas disciplinas
estão unidas do ponto de vista disciplinar.
No final de 2006 e no âmbito da adaptação da formação de professores ao
Processo de Bolonha, o Ministério da Educação propôs um novo regime jurídico de
formação de professores, que surpreendeu por unificar a formação de professores
tanto de História como de Geografia no Mestrado em Ensino de História e
Geografia. Esta unificação foi vivamente contestada tanto em História como em
Geografia. Em Geografia, surge um documento único: as duas associações
socioprofissionais de Geografia de âmbito nacional (Associação Portuguesa de
Geógrafos e Associação de Professores de Geografia) e todos os departamentos
universitários com cursos de Geografia assinaram uma carta, dirigida à então
Ministra da Educação, protestando contra esta unificação. De nada valeu, o
regime jurídico foi aprovado no começo de 2007 e as universidades obrigadas a
cumpri-lo.
No âmbito do Mestrado, os futuros professores passaram a repartir-se pela
formação nas duas disciplinas, diminuindo, assim, a anterior preparação numa
delas. Pior ainda, era a situação em que se ingressava no Mestrado: um
diplomado em qualquer área, desde que tivesse 120 créditos no conjunto das
disciplinas (dois anos de formação) e pelo menos 50 créditos numa delas (menos
de um ano), poderia ingressar no Mestrado em Ensino e tornar-se professor tanto
de História como de Geografia, para alunos dos 12 aos 17/18 anos; no mestrado,
frequentava uma ou duas cadeiras específicas destas áreas. Assim, um licenciado
em Turismo, por exemplo, com cerca de um ano de formação (ou menos) em História
e em Geografia, era considerado apto para ensinar a disciplina ao longo de cinco
diferentes graus. Pode-se ser bom professor de uma disciplina de que se possui
uma escassa formação científica específica? Não.
As autoridades nunca o admitiram publicamente, mas esta desvalorização da
formação inicial representava uma secundarização das Ciências Sociais e
apontava para a futura integração numa única disciplina de História e
Geografia, estando os futuros professores aptos para leccionarem ambos os
conteúdos. Num inequívoco registo neoliberal, a formação do cidadão é menos
importante que a sua preparação em Matemática ou Ciências Naturais, mais úteis
para o mercado de trabalho.
Este modelo de formação começou a ser implementado em 2007/08, sendo claras
as dificuldades de professores de História em dominarem os conteúdos de
Geografia e vice-versa.
Em 23 de maio de 2011, e tendo entretanto mudado o Governo, professores de
Geografia e de História, juntamente com as associações socio-profissionais de
ambas as disciplinas, lançaram a Petição Pública Nacional inicialmente
identificada. Note-se que este foi um movimento desencadeado a partir da universidade,
onde se formavam os futuros professores. Se a Petição atingisse 4000
assinaturas, seria obrigatoriamente discutida pelo Parlamento português.
Tomou-se a difícil decisão de ela só ser subscrita por professores de ambas as
disciplinas – que, no conjunto do país, seriam cerca de 9500. Pretendeu-se
garantir a autenticidade da subscrição e que ela fosse, em si mesma, um momento
de mobilização dos professores de ambas as disciplinas. Também nesta linha, apostou-se
na assinatura em papel, em cada escola, e só depois, numa segunda fase, foi
aberta a Petição online.
A implementação da Petição não foi fácil. Muitos professores aderiram
militantemente, porque se tratava de defender a dignidade da formação inicial
da sua disciplina. Contido, sem estar directamente em causa a sua estabilidade
laboral, outros docentes encararam com distanciamento a subscrição de uma
Petição, sempre um ato de contestação ao poder político, em que os cidadãos se
identificam e responsabilizam individualmente. Em muitas escolas, faltou o
professor que organizasse a recolha de assinaturas. Vários professores de
Historia e de Geografia, disciplinas que se reclamam habitualmente da formação
cidadã, revelaram um reduzido espírito de responsabilização cívica. Em
setembro, como previsto inicialmente, abre-se a Petição à subscrição online e
muitos professores, nas suas casas, não nas suas escolas e perante os seus
colegas, subscrevem então a Petição – o que revela um mudança de comportamentos
sociais. No começo de outubro, surgem nos jornais notícias de que o Governo
pretende reduzir a carga horária tanto de História como de Geografia e,
sentindo que as suas disciplinas (e, eventualmente, os postos de trabalho) estavam
em perigo, outros docentes subscreveram a Petição. No começo de dezembro de
2011, a Petição Publica Nacional é enviada para a Assembleia da República com 4866
peticionantes (mais de metade subscreveram-na nas suas escolas), o que
representa cerca de metade do total dos professores de ambas as disciplinas de todo
o país. As assinaturas foram recolhidas em 6 meses, intercalados pelas férias
de Verão. Esta foi a maior movimentação dos professores de Geografia e História
portugueses, se consideramos tanto individualmente como em conjunto.
Já em 2012, na Assembleia da República, os promotores da Petição foram
recebidos pela Comissão Parlamentar de Educação, Ciência e Cultura, que
reconheceram a justeza de uma alteração do modelo de formação de professores,
com maior exigência de formação prévia para os futuros docentes, acolhendo também
a ideia de autonomização da formação inicial nas duas disciplinas. O assunto
foi levado depois a debate do Plenário da Assembleia da República, tendo a
generalidade dos grupos parlamentares manifestado a sua concordância com esta
reivindicação. O próprio Ministério da Educação manifestou a sua concordância
com as preocupações manifestadas na Petição quanto à qualidade da formação
docente, mas remeteu para uma revisão global do regime jurídico da formação
inicial docente a alteração da formação de professores de História e de
Geografia. Não se esgotaram aqui as diligências dos promotores da Petição
Pública Nacional “Por uma formação autónoma dos professores de Geografia e
História. Por uma formação inicial de qualidade”, que foram desenvolvendo uma
permanente atividade de lobbing. Ainda
em 1 de agosto de 2013, foram recebidos no Ministério da Educação.
Em final de novembro, como já se referiu, o Ministério da Educação, na sua
proposta enviada para (apressada) discussão pública, a formação dos professores
de Geografia e de História é de novo autonomizada, sendo o único caso de
formação bidisciplinar em que tal sucede. A partir de agora, só se pode ser
professor de cada uma das disciplinas com, pelo menos, 120 créditos (2 anos) de
formação, tanto em História como em Geografia; dada a estrutura dos cursos, na
prática vão ser professores de Geografia licenciados em Geografia (3 anos) ou
de História, licenciados em História. Estamos longe da exigência de apenas 50
créditos em cada uma. É preciso acrescentar que a orientação geral desta
revisão foi no sentido de uma maior exigência nas condições de ingresso nos
cursos de formação inicial de professores – no que se enquadrava a nossa
própria reivindicação.
A dignificação da formação docente constitui, em si mesma, um instrumento
de dignificação das próprias disciplinas – neste caso, de História e de
Geografia. Retomar a autonomia na formação inicial permite reforça, do ponto de
vista institucional, as duas disciplinas. A Petição Pública Nacional foi um
grande sucesso (pela primeira vez, os professores de Geografia e de História
foram individualmente solicitados a tomar uma posição política), ao mobilizar
metade dos professores portugueses em torno de uma revindicação que não se
prendia com salários ou outros direitos laborais, mas com a dignificação do
ensino. Contudo, fica a consciência do desafio de uma ainda maior participação
cívica por parte dos docentes de duas disciplinas que se justificam na medida
em que contribuem para a formação de cidadãos socialmente intervenientes, seja
em torno de uma gestão racional e justa dos territórios, seja na defesa do
património identitário.
A conjugação de esforços das várias associações socioprofissionais (para
além das mencionadas acima, a Associação de Professores de História e a
Associação Insular de Geografia) constitui, em si mesma, uma herança positiva
deste processo. De forma inequívoca, valeu a pena lutar – não restam dúvidas
que foi a Petição Pública Nacional e a legitimidade que ela conferiu aos seus
promotores para continuarem a reivindicar a individualização da formação em
Geografia e em História que levou à denúncia de uma junção que muitos, mesmo
entre os que constestavam a medida, julgaram irrevogável.
Por último, fica o principal desafio. As disciplinas de Geografia e de
História viram, recentemente, aumentada a respectiva carga horária, pelo atual
governo de centro direita – no que se reconhece o apego a valores
nacionalistas. Por outro lado, retomou-se a formação inicial dos seus docentes.
Resta o essencial: o compromisso de ambas as disciplinas com uma formação
crítica e cidadã, ou seja, uma formação que ultrapasse os limites dos manuais
escolares e da sala de aula e se traduza numa efetiva discussão e participação
nos desafios comunitários.
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